~~O tempo~~

E tudo pareceu tããão bom. Tão certo... Tão indiscritível...
Eu sou do tipo metida, vê? Do tipo que nunca admite lhe faltar nada. Nem idéias, nem soluções, nem homens, ou amores, ou palavras...
Mas agora sou forçada a admitir que naquele beijo, me faltou palavras... Me faltou ar. Me faltou idéias, ou soluções... Uma vez que tudo parecia solucionado. Tudo parecia resurmir-se àquilo.
Àquele ínfimo e íntimo contato dos lábios dele contra os meus...
O mundo poderia acabar naquele momento... Poderia mesmo.
Quando ele me lambeu, mordeu, mordiscou, sugou, chupou e beijou nos lábios, por um segundo, eu achei mesmo que o mundo tinha acabado ali...
Pelo modo como cada segundo parecia a eternidade, e cada eternidade parecia um segundo.
Pela forma como o tempo parecia relativo e sem sentido e pela forma como tudo de fato ficaria certo... Ou, talvez já estivesse certo!
Aquilo era certo. Aquilo era verdadeiro.
Aquilo era real.
Um beijo.
Um beijo foi tudo o que levou para que eu esquecesse do mundo. Do meu marido, dos meus casos e do meu mais recente ex-amante. E digo ex porque após esse beijo, e o fato de ele não ter aparecido no hospital ao longo de todo esse tempo haviam tirado dele todo o meu desejo ou atenção...
A verdade é que se ele ainda não havia perdido completamente o seu encanto, ele havia agora... Meu trabalho havia perdido agora... Tudo...
Tudo havia perdido o sentido agora... Tudo, menos ele, e eu. E nossos lábios, e nossas línguas e vez ou outra nossos dentes, com os quais puxávamos os lábios um do outro mais para perto.
O tempo não existia... Eu não existia... Ele não existia...
Naquele tempo existiu um nós.
Existiu um nós que nunca existiu...
Um nós que quando ele se afastou e me olhou nos olhos eu já sabia...
Que o nosso tempo havia acabado. O tempo dos sonhos, de realidades, de prazer e felicidades...
O tempo de um nós que eu agora queria mais que tudo... Mas que para ele... Parecia ter sido um pesadelo...
Esse tempo, acabara.

~~O beijo~~

~~O beijo~~
Naquela noite, eu tive momentos de lucidez e consciência, outros não tão conscientes assim... Talvez tudo não tivesse passado de um sonho...
É, eu achava que não...
Mas o que sei é que ao longo de minha estadia no hospital com aquele são bernardo guardando meu sono e me protegendo até mesmo do que não precisava, minha recuperação foi bem rápida.
Quer dizer, "rápida"...
Era o que eu ouvia dos médicos...
Eram apenas palavras meio soltas até os últimos dias, quando eles de fato me deixavam ficar consciente o suficiente para entender tudo o que havia acontecido...
O tiroteio havia sido bastante longo... Longo o suficiente para que os vizinhos do bar chamassem a polícia a tempo de capturar os atiradores...
Quando a polícia chegou viu uma cena digna de quadros de revolução...
A quantidade de corpos no chão era enorme, uma vez que o bar estava lotado, e ninguém escapara sem pelo menos um tiro... O barman e algumas outras pessoas estavam mortas... E eu quase me unira à esse montante não fosse pelo fato de que ele havia permanecido segurando o corte na minha jugular com o braço bom.
Ele, meu são bernardo protetor... Meu cão de guarda, meu fiel companheiro.
Eu devia minha vida à ele e eu não sabia como pagar essa dívida...
Não tinha idéia...
...
Acordei de meus devaneios com o bater leve na porta do banheiro do meu quarto no hospital. Já estava vestida, e o rasgão em meu pescoço já havia diminuído bastante, me possibilitando mexer um pouco o braço. Bem pouco por enquanto, mas o suficiente para que eu me vestisse...

"Você precisa de ajuda...?"

A voz grossa veio do outro lado da porta e eu o reconheci de imediato. Olhei uma última vez naquele espelho e notei que estava consideravelmente pronta, faltava apenas fechar o zíper do vestido em minhas costas, uma vez que estava vestindo um vestido justamente para mover o mínimo possível o braço do lado da jugular que havia sido ferido.

"Preciso sim. Pode entrar."

Não, eu não havia trancado a porta, mas sabia que não seria necessário. Ele não deixaria ninguém entrar, e ele com certeza já havia me visto em situações piores, bem piores, uma vez que eu imagino que apagada e sangrando quase até a morte não deveria ter sido muito sexy.
Ele entrou e me observou, seus olhos passaram por meu corpo todo, mas diferentemente do que aconteceria se outra pessoa me olhasse daquela forma, aquilo não me incomodou. Sem dizer uma palavra aproximou-se e fechou o zíper de meu vestido com cuidado, evitando até mesmo chegar muito próximo de meu braço.

"Você sabe que poderia encostar em mim se quisesse, certo...? O braço está ótimo. É o pescoço que está meia-boca."

Ele me lançou um olhar severo por alguns instante, antes de acariciar meu braço levemente.

"Sei disso. Mas as chances de você se mexer demais sem a minha ajuda e tirar esse curativo do lugar já são bem grandes para que eu a ajude..."

Lhe dei um rosnado baixo, que só serviu para ele dar um riso orgulhoso e exibido, o que acabou arrancando de mim um sorriso... Afinal, ele estava certo, não?
Como sempre.

"Ah é? E que pretende fazer? Se mudar para minha casa e ficar me seguindo com algumas gazes e faixas?"
"Não. Você vai para a minha."

Ele respondeu antes que eu pudesse terminar meu riso, me fazendo engasgar um pouco no riso e corar imensamente.
Ele estava falando sério?

"Não posso.. Quer dizer... Eu tenho a minha casa... E... E meu trabalho!"

Pensar no meu chefe que nunca aparecera durante toda a minah estadia no hospital me enrolou o estômago.

"Não importa. Não vou te deixar e não suporto seu marido. E nem o homem que te levou até o bar daquela vez..."
"O taxista?"

Eu tentei fugir da pergunta, rir... Mas ele sabia bem o que me levava a beber. Ele sempre soube. E bastou um olhar severo para que eu soprasse a franja do rosto e me voltasse de frente para ele, agora de costas para o espelho.

"Era meu chefe... O dono da empresa..."

Eu ignorei a olhada feia de seus olhos negros diretamente nos meus.

"Não me olhe desse jeito... Não me tirou nada que eu já não tivesse perdido..."
"Te fez levar um tiro."
"Eu teria levado o tiro de qualquer jeito. Ele me deixou em casa. Meu marido que havia trancado a porta."
"Ele de novo."

Ele rosnou para mim e me pegou pelo braço bom, levou os lábios até os meus e me beijos.
De uma forma que eu nunca havia sido beijada antes...

~~Dedos Entrelaçados~~

~~Dedos Entrelaçados~~

Dizem que a esperança é verde. Ou era a força de vontade que era verde?
É, eu não me lembro bem... Mas a verdade é que nesse momento não me lembrava muito bem de nada...

As coisas estavam começando a se misturar em minha cabeça, e embora alguns dias antes tudo houvesse sido muito claro para mim, tudo aquilo agora não passava de um borrão que eu não sabia explicar.
Mas não era como se eu estivesse mesmo preocupada com isso agora.
Eu sabia que estava no hospital, e sabia que ele agora passava dia e noite ao meu lado.

Sempre ali.

Eu podia sentir o perfume dele sempre à minha volta, próximo, alerta. Concentrado.
Eu nunca o havia visto concentrado antes, mas me parecia uma imagem agradável... Talvez combinasse com aquele semblante sério e ao mesmo tempo... Descontraído.
Era como se ele sempre escondesse algo. Sempre tivesse uma carta na manga... Um às que eu não sabia bem de onde sairia, ou o que seria ou o que faria.
Mas ele era sempre assim.

Mas eu gostava de sua presença.
Mesmo não podendo de fato vê-lo ou falar nada, nem demonstrar que eu sabia que ele estava ali.
Eu gostava. Me deixava mais calma.
Era como se de alguma forma eu soubesse que tudo ficaria bem. E ficaria bem porque eu não estava sozinha. Porque ele estava ali.

Eu acho que demorou quase uma semana para que eu estivesse forte o suficiente para abrir os olhos direito, mas eu não tenho certeza uma vez que vivia entre a consciência e o blackout completo.

"Hm..."

Esse foi o grunhido que saiu de meus lábios quando eu consegui abrir os olhos numa madrugada, a luz estava bem baixa e por isso não em agrediu muito os olhos.
Apesar disso, ele não dormia. Mas isso não era bem novidade... Rezava a lenda que ele nunca dormia.

"Olá..."

Eu virei o rosto para ele e sorri. Aquele comprimento era um tanto quanto formal demais na condição em que estávamos, mas, aquilo não importava, ouvir a voz dele era bom.

"Oi... Há quanto tempo nós..."
"Não importa."

Ele me cortou calmamente, e embora aquilo geralmente me deixasse furiosa, não foi o que aconteceu naquele momento.

"Obrigada por estar aqui."

Ele pareceu um pouco chocado com aquela frase, mas não demonstrou.

"Não foi nada. Fico feliz que esteja bem."
"Digo o mesmo... O que houve?"
"Parece que foram apagar o barman depois de ele ter testemunhado um assalto ou algo assim... Mas escolheram um momento de pico e por isso acabamos meio...."
"No lugar errado na hora errada?"

Ele sorriu, chegando até a dar uma risada, eu retribuí da mesma forma, mas algo me incomodava um pouco no pescoço.
Cheguei a levantar a mão para tocar e tentar ver o que era, mas ele, num movimento bastante rápido e furtivo a impediu no meio do caminho.

"Não pode ficar tocando..."
"Blé... O que houve exatamente? Levei um tiro?"
"Foi, pegou de raspão mas atingiu a jugular, por isso está demorando tanto à cacitrizar e você perde tanto sangue..."
"Ah.. E você?"
"Foram só alguns no braço, nada sério..."
"Alguns?"

Ele deu de ombros, e eu sorri.

"Agora volte à dormir... Precisa se recuperar..."
"Nah, não vou te deixar aí acordado sozinho."

Ele riu da minha expressão de brava um tanto quanto patética, o que me fez desistir dela e abrir um sorriso.

"Não aguentaria me acompanhar nem se estivesse saudável."
"Metido..."

Eu o olhei com uma expressão irônica embora soubesse que aquilo provavelmente era verdade. Era muito difícil acompanhá-lo, em muitas coisas.
Ele apenas me deu mais um daqueles sorrisos enigmáticos e eu acabei desistindo mais uma vez.

"Está bem, mas venha cá, chegue mais perto."

Ele pegou a cadeira e carregou-a para mais próximo da minha cama, quando sentou-se, eu estiquei um dos braços e puxei uma das mãos dele para cima de minha maca, entrelaçando os dedos com os dele.

"Até amanhã de manhã?"
"Até. Boa noite."
"Para você também se alguma hora acabar adormecendo..."
"Obrigado."

Eu sorri para ele e fechei os olhos, tentando ajeitar melhor o pescoço.
Podia sentir os olhos dele sobre meu corpo doente, mas de certa forma, não me importei.
Não havia ali nenhum segredo obscuro ou nada que ele não conhecesse... Exceto se houvesse ali alguma nova cicatriz, mas, essa nem mesmo eu conhecia.
Podia sentir o perfume dele à minha volta e embora aquilo fosse tudo muito novo, era bom. Era como ter um pedaçinho do lar comigo. Um lugar onde recostar a cabeça sem preocupações.
Ele era meu porto-seguro.

~~ Luz.~~


Forcei e abri os olhos. A luz me cegou um pouco, mas eu precisava saber. Precisava saber quem estava ali. E então, notei o quanto estava enganada.
Não era ele quem estava ali, ao meu lado, cuidando de mim, e tão pouco era o meu marido.

"Mandei não abrir..."

A voz dele estava diferente e ficando cada vez pior e eu, agora, entendia o que estava acontecendo. A voz dele estava assim por causa de um zumbido constante dentro do meu ouvido.
Tudo que ouvia estava assim, mudado, bizarro. Estranhamente grosso e errôneo.
Meus olhos encontraram os dele, mais negros do que eu me lembrava de já os ter visto alguma vez na vida, e aquele pensamento besta e sem motivo me arrancou um sorriso. Fraco.
Me sentia indo para o paraíso. Não estava bem preocupada em saber o que tinha acontecido sabe? E veja bem, não é que eu quisesse morrer. Não, não gostava de suicidas. Apenas que naquele momento, naquele leito de hospital eu encontrara uma paz que nunca encontrara antes na vida.
Eu estava fraca, morrendo sabe-se-lá de quê, com tontura, a visão embaçando, mas, meu leito de morte até que estava muito melhor do que eu jamais havia imaginado, quando por vezes imaginava minha morte sempre me imaginava sozinha, numa cama de hospital, com o fígado num estado tão deplorável que nem mesmo Hannibal quereria comê-lo.

"Oi..."

Minha voz estava agora ainda mais fraca e ridícula e eu encarei meu companheiro de bar coçar a barba desgostoso, levantando-se da cadeira ao lado do meu leito e gritando por mais médicos.
Era ele afinal... O único capaz de me perdoar, o único capaz de me entender, o único que estava ali para assistir a minha morte.

Eu queria saber mais dele, se estava bem, se ficaria bem. Ele estava comigo no bar, e ainda assim, enquanto eu estava atirada num leito sem nem saber mais o que era em cima e o que era embaixo, ele já estava de pé, firme como um touro, cuidando de mim.
Ele ficaria bem, eu esperava... E embora eu naquele instante quisesse cuidar dele, minhas forças começavam a se esvair.
Meus olhos se fecharam sem minha permissão. Eu queria vê-lo mais. E aos poucos senti o ar começar à me faltar. Lentamente.
É, aquilo não era como ir para o paraíso. Era como ser sufocada por uma enchurrada de mágoa que eu não conseguia explicar, e muito menos, naquela situação, me livrar.

Eu ouvi quando os médicos invadiram meu quarto, e pude sentir quando começaram a mexer em mim. Eu podia sentir os olhos preocupados dele sob mim.

E então, sendo ele a última coisa que passou minha mente, apaguei de novo...